8 de março de 2015

quando eu nasci




...
Quando eu nasci nunca tinha visto nada.
Só um escuro, muito escuro, na barriga da minha mãe.
Quando eu nasci nunca tinha visto
o sol, nem uma flor, nem uma cara.
Eu não conhecia ninguém,
nem ninguém me conhecia a mim.
Quando eu nasci
não sabia o que era o mar, 
nem que existiam florestas,
nem que havia um mundo 
com montanhas e praias.
Quando eu nasci nunca tinha visto um passarinho,
nem sabia que havia animais com penas,
outros com escamas, 
e outros com pêlo, como o meu cão.
Quando eu nasci
nunca tinha brincado com pedras, 
nunca tinha mexido na terra,
nem feito túneis na areia.
As minhas mãos
nunca tinham tocado em nada,
só uma na outra.
Quand eu nasci
nem sonhava que havia céu
e que o céu mudava de cor
e que as nuvens eram tão bonitas.
Quando eu nasci era tudo novo.
Tudo por estrear.
Os meus olhos ficaram espantados
quando descobriram
que todas as coisas
eram feitas de uma cor.
A cor encarnada das cerejas.
A cor verde dos jardins.
A cor azul que pinta o fundo do mar.
A cor amarela do meu chapéu.
A cor castanha de alguns passarinhos.
A cor branca das nuvens.
A cor preta quando se apaga a luz.A minha boca ficou espantada
quando descobriu do que era capaz:
De chorar muito alto.
De rir com vontade.
De chamar as coisas pelo seu nome.
De dizer palavras feias e bonitas.
De dar beijinhos e deitar a língua de fora.
De provar leite, sopa, iogurtes e frutas.
De saborear
todos os sabores.
O meu nariz também ficou surpreendido...
Logo no dia em que eu nasci, 
espantou-se com a força
com que puxava o ar para dentro do meu corpo.
A partir de então, nunca mais parou.
A toda a hora, a todo o segundo,
traz-me ar fresquinho e cheiros novos.
Há uns de que eu gosto muito:
O cheiro do colo da minha avó.
O cheiro das papas da manhã.
O cheiro das tintas da minha escola.
o cheiro do meu champô.
O cheiro das férias,
quando chega o verão.
Lá dentro na barriga da minha mãe,
tinham-me já chegado algumas vozes,
o som de alguns instrumentos.
Mas eu podia lá imaginar...
Que as ondas falam para cá e para lá.
Que as árvores, quando o vento canta,
cantam também.
Que é tão bom quando alguém
nos fala baixinho ao ouvido.
Que uma coisa quando cai ao chão
faz um estrondo.
E que uma folha
quando pousa faz só: plic!
Quand eu nasci as minhas mãos 
começaram logo a perguntar:
O que é isto? Quem és tu?
E desde então
nunca mais pararam,
sempre a descobrir
e a aprender,
a abrir e a fechar portas.
Com elas já aprendi
que há coisas macias e outras que picam.
Que há coisas quentes e outras frias.
Que há coisas que se podem desmanchar 
e que têm lá dentro outras coisas.
E que essas coisas,
por sua vez,
podem continuar
a desmanchar-se,
vezes e vezes sem fim...
Com as minhas mãos
chego a todos os lugares
e, quando não consigo lá chegar,
ponho-me em biquinis dos pés.
Porque os meus pés, quando eu nasci,
ainda não sabiam andar.
Mas aprenderam depressa
e desde então levam-me a toda a parte,
fazem-me correr
e dançar
e dar saltos no colchão.
Quando eu nasci não sabia quase nada.
Agora, pelo menos, uma coisa já aprendi.
Ainda há um mundo inteiro para conhecer,
milhões e milhões de coisas e lugares
onde as minhas mãos nunca chegaram.
Milhões e milhões
de respostas escondidas
milhões e milhões
de cores que eu nunca vi.
E de cheiros e de sons e de sabores.
Mas uma coisa também é certa.
Todos os dias descubro
sempre mais um bocadinho.
E isso é a coisa 
mais fantástica que há!
...


Foi este o texto da peça de teatro (de sombras) que fomos ver ao Maria Matos. Faz parte do imaginário de Lourdes de Castro.

Miraginava. Foi hoje o último dia.
Direção: Joana Providência.
Interpretado por duas mulheres, Leonor Keil e Margarida Gonçalves.
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